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Onze mulheres contam suas histórias de assédio no audiovisual brasileiro

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Este texto foi mantido intacto conforme os relatos das trabalhadoras na internet.

“Ainda que nos últimos meses tenham ganhado as manchetes diversas denúncias sobre assédio na indústria do entretenimento americana – casos como o do produtor de Hollywood Harvey Weinstein e do ator Kevin Spacey –, pouco se falou sobre o que ocorre no Brasil.”

E o que mulheres em diferentes posições dentro da indústria do entretenimento brasileira têm a dizer? Já viveram ou testemunharam situações de assédio sexual no trabalho?

“Uma pesquisa de 2015 do site Vagas.com entrevistou 4.975 mil profissionais de todas as regiões do país e revelou que 52% das pessoas já foram vítimas de assédio sexual ou moral. Enquanto o assédio moral foi relatado em proporções semelhantes por homens (48%) e mulheres (52%), o sexual é quatro vezes mais comum entre elas: 80% das pessoas que disseram ter sido vítimas de abuso são do sexo feminino.

Dentre as pessoas que sofreram algum tipo de abuso, 87,5% não denunciaram seus agressores.

Os principais motivos apontados para o silêncio são o medo (de perder o emprego: 39,4%; de represálias: 31,6%; de levar a culpa: 8,2%), a vergonha (11%) e a culpa (3,9%). Dentre quem conseguiu ir em frente e denunciar, 74,6% afirmaram que o agressor permaneceu na empresa mesmo após a denúncia.

A grande maioria das entrevistadas pediu absoluto anonimato de seu nome – refletindo os dados da pesquisa e comprovando que o medo de sofrerem retaliações profissionais ou terem suas denúncias desacreditadas ainda é muito forte. O resultado é um panorama do que acontece nos bastidores de nossos programas e filmes nacionais favoritos.

Vânia Catani, 55. Produtora de cinema.

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“Depois pensei: por que eu não dei com a mão na cara desse cara? Lá mesmo? Na frente de todo mundo? E olha que eu nem sou uma mulher fofa. Combinaria comigo dar um tapa na cara dele. Mas eu não fui capaz” 

Se tem uma coisa democrática neste mundo é o machismo. Independentemente da classe social, da formação intelectual. Todos praticam, mais ou menos. Agora que tá tendo uma conscientização e os mais jovens estão ficando mais atentos.

Meu caso aconteceu quando eu estava em um evento de mercado do nosso setor e fui cumprimentar um cara que conheço há muitos anos, que trabalha na parte institucional do cinema, digamos. Eu me levantei da mesa de reunião em que eu estava para falar oi para ele. Fazia muito tempo que não nos víamos. E quando eu tava saindo, ele deu uma chupada, uma lambida na minha orelha e falou: “Nossa, como você tá gostosa”.

Isso agora, eu tenho 55 anos, entende? É uma coisa que ninguém tá livre. Eu achei que quando eu ficasse velha ia melhorar, mas não adiantou, não.

Sabe quando você perde o rebolado? Eu não acreditava. Minha orelha ficou até molhada. E eu fiquei transtornada, eram 10 horas da manhã. Era a primeira reunião do dia. Quando eu voltei para minha mesa, voltei meio lesada, perdi o fio da meada do discurso. Você sente várias coisas. Inclusive, vergonha. Na hora que acontece você fica com vergonha, se perguntando o que aconteceu. É muito perturbador.

Depois eu pensei: por que eu não dei com a mão na cara desse cara? Lá mesmo? Na frente de todo mundo? E olha que eu nem sou uma mulher fofa. Combinaria comigo dar um tapa na cara dele. Mas até para uma mulher com minhas características, te desarma. Você fica sem reação. É muito louco. Depois nunca mais cruzei por ele, por sorte.

Mas eu acho que essas situações estão diminuindo, porque cada vez que acontece um caso e ele é exposto – mesmo que só no setor, não na imprensa –, o outro vai pensar duas vezes antes de fazer de novo. Mas se ninguém falar nada, fica por isso mesmo. Por isso que depois fiquei muito puta comigo de não ter falado nada sobre meu caso na hora, de não ter reagido, de não ter falado ali mesmo. Mas eu não fui capaz. Infelizmente não fui capaz.

N., 22. Estudante universitária de audiovisual.

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“Eu ficava pensando: posso mandar ele se foder agora, mas eu vou precisar dele até o final da minha graduação. O que eu faço? Hoje ele continua na coordenação do curso”

Meu caso ocorreu em uma grande universidade brasileira, em 2015, em um curso ligado à área de audiovisual, mas com pessoas que trabalham na área do entretenimento. Eu estava ajudando a produzir a participação de minha turma em um evento de cinema e precisava falar com o coordenador do curso, que trabalha também como produtor e que tinha acabado de chegar na universidade.

Durante nossa conversa, em uma cantina, toda vez que eu começava a falar sobre as coisas que precisava resolver, ele me ignorava e soltava comentários inapropriados. Então, uma hora, ele começou a me perguntar sobre o curso, qual matéria que eu preferia etc. Eu mencionei uma matéria que gostava e ele perguntou por quê. Eu então expliquei que, como minha mãe é professora, eu gostava de áreas ligadas à educação. Ele perguntou: “Ah, sua mãe é professora?” – Ele sabia que eu era de São Paulo – “Da rede pública de São Paulo? Qual o nome dela?”. Eu perguntei por que ele queria saber disso, e ele respondeu: “Ah, porque eu já tive várias amantes professoras da rede pública de São Paulo, vai que sua mãe é uma delas”.

Quando fala da gente é uma coisa… mas quando fala da sua mãe, do nada, de graça… Ele continuou fazendo vários comentários sobre meu corpo, minha aparência, ficou tentando saber da minha vida pessoal. Foi bem ruim. Eu não o conhecia, não tinha intimidade com ele. Eu tinha marcado uma reunião com ele formalmente. E ele ainda dava risada, super tranquilo. Fiquei muito sem graça, pensando: eu posso mandar ele se foder agora, mas eu vou precisar dele até o final da minha graduação. O que que eu faço? Daí eu não fiz nada, o que me deixa frustrada até hoje. Hoje ele continua na coordenação do curso.

Conversei com outras colegas da universidade, e outras meninas passaram por situações parecidas com ele. Agora nos organizamos para que nenhuma menina do curso vá falar sozinha com ele.

L., 28. Assistente de direção de cinema e TV.

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“Eu dei minha cara a tapa e realmente levei um tapa.”

Estou contando esse caso específico, mas a verdade é que em todos os trabalhos que fiz já fui assediada de alguma forma.

Estava participando como assistente de direção em uma série para TV, e vínhamos sofrendo uma série de situações de assédio moral e sexual no set, inclusive do produtor-executivo, a maior autoridade no set, e dos chefes da equipe. Casos como comentários sobre nossa roupa, perguntas de por que estávamos de batom, que ficávamos sexy com aqueles óculos, fungadas no cabelo etc. Depois de umas semanas, íamos filmar em Belém (PA), e eles ficavam fazendo uma série de “brincadeirinhas”, do tipo, “ah, no final da diária vocês vão dar uma festinha para a gente, vou pedir para te colocarem num quarto do lado do meu” etc.

Um dia comentei no Facebook, enquanto lamentava não ter tido a oportunidade de participar de uma marcha a favor dos direitos das mulheres em São Paulo, que estava no set mais machista que já tinha trabalhado. O diretor, que era meu chefe direto, então veio conversar comigo e perguntar o que estava acontecendo. Expliquei para ele a situação e ele se disse chocado – embora na verdade todos soubessem do clima no trabalho. Ele então sugeriu que houvesse uma conversa geral da equipe, e eu expliquei que para isso, primeiro, seria necessário ouvir todas as mulheres. Eu e minha assistente então recolhemos depoimentos e fizemos uma carta a todos da equipe, em tom emergencial. A verdade é que todas as meninas estavam apavoradas e pensando: se agora está assim, imagina quando formos para Belém? E 100% das mulheres já tinham sido assediadas naquela produção.

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O documento causou uma reação muito forte. Nos dois dias seguintes ficou um clima esquisito, até que um homem gay da equipe aproveitou a abertura mandando um email falando que também sofria muito assédio no set. Foi quando o produtor-executivo foi falar para alguns homens da equipe que isso não podia acontecer, e muitos deles ficaram putos: como não podiam mais “brincar” nem “xavecar” em serviço?

No fim houve uma reunião, uma conversa com toda a equipe, em que muitos homens deixaram claro que eram ‘homens de família’ e que eram totalmente contra qualquer tipo de assédio.

As situações de assédio pararam. Seguimos com o trabalho, fomos para Belém, fizemos nossas gravações. Uma semana antes de tudo terminar, o produtor-executivo me chamou para uma conversa e disse que eu e minha assistente estávamos demitidas. Ele não conseguia, no entanto, me explicar o porquê. Ficava dizendo que nosso relacionamento não estava mais ‘funcionando’, que não estava mais ‘dando certo’. Foi muito estranho, porque nem ele sabia se justificar, nem fazia sentido para a produção demitir duas funcionárias quando faltava uma semana para terminar o trabalho – os custos em fazer um movimento desse são altos, financeiramente não vale a pena.

Depois, o diretor me ligou – meu chefe direto – e disse que também não tinha entendido o que tinha ocorrido, que não havia partido dele a demissão, que eu não havia feito nada de errado com ele para ser demitida.

Na hora tudo estava muito confuso, mas depois ficou claro para mim que aquilo estava acontecendo como uma espécie de castigo, retaliação, por eu e minha assistente termos encabeçado a carta.

Foi uma crise muito pesada para mim. Me sentia a pior pessoa do mundo. Isso não me fortaleceu, só me colocou pra baixo. Ainda mais porque nenhuma pessoa da equipe questionou nossa saída ou veio atrás de nós para conversar – nem as meninas que apoiaram e participaram da carta, nem os homens que tinham admitido seus erros. Pareceu um recado do produtor para mim e todos da equipe.

Foi muito difícil. Eu dei minha cara a tapa e realmente levei um tapa.

Me recolhi, peguei pouquíssimos trabalhos depois disso e saí do país para fazer um mestrado.

Tenho certeza que o que eu fiz não foi em vão – o diretor disse que o caso fez com que nos outros dois filmes que ele dirigiu ele tenha, já no primeiro dia, conversado com a equipe que assédios não seriam tolerados. Então não foi em vão, mas é uma situação que não vai mudar da noite para o dia e que ainda não sei dizer se vai melhorar. O fato de sermos na grande maioria das vezes freelancers nesta área também piora muito. É cada um por si. A gente não tem garantia de nada. E isso é um dos motivos que o assédio é bastante normalizado e liberado. As pessoas não querem ficar manchadas, na ‘geladeira’.

T., 31 anos. Apresentadora de TV.

“Ele ficou me esperando na porta da emissora, me trancou pra fora ali na saída de emergência na escadaria, colocou o pé na frente da porta e disse que eu só sairia de lá se desse um beijo nele”.  

A minha história de assédio aconteceu depois da gravação do piloto de um programa. Eu estava falando um monte de putaria no vídeo; depois a gente acabou indo tomar cerveja e o câmera que estava trabalhando com a gente entendeu tudo errado.

No dia seguinte, ele ficou me esperando na porta da emissora, me trancou pra fora ali na saída de emergência na escadaria, colocou o pé na frente da porta e disse que eu só sairia de lá se desse um beijo nele. Era o câmera que veio a trabalhar comigo diariamente, foi horroroso e foi extremamente normalizado por todo mundo. Tipo assim, só mais um dia na vida da pessoa.

Foi a única vez que aconteceu isso porque na emissora em que eu trabalhava ele era um dos poucos héteros que trabalhavam com a gente. Eu não sou atriz, eu estou falando totalmente de fora, mas eu acredito que várias coisas, principalmente o que acontece no Brasil, são desse nível de escrotice.

“Nos últimos três, quatro anos eu não sofri nenhum assédio. Mas se tivesse sofrido, eu não falaria o nome do meu chefe. Eu teria medo”.

Eu acho que a onda de denúncias não vai chegar no Brasil, as pessoas não vão dar nomes aos bois porque a gente tem muito medo de perder o emprego.

Na maior parte das vezes meus diretores foram mulheres ou homens gays e eu não sei se também normalizei muito a coisa no início de carreira. Posso garantir que nos últimos três, quatro anos eu não sofri nenhum assédio. Mas se eu tivesse sofrido eu não falaria o nome do meu chefe. Eu teria medo.

A., 36 anos. Diretora de produção.

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“O que as pessoas mais perguntam é: ‘Mas você tem certeza? O que aconteceu? Mas como foi? Como assim?’. Desculpa mas não interessa”.

Eu sofri um estupro no ano passado. Foi no final da filmagem, com uma pessoa da área, mas que não era da equipe. O mais duro disso é continuar sofrendo outro tipo de violência porque as pessoas não ficam do seu lado. Teve gente que estava no local e nem foi depor na delegacia!

O que as pessoas mais perguntam é: ‘Você tem certeza?’ ‘O que aconteceu?’ ‘Mas como foi?’ ‘Como assim?’. Desculpa, mas não interessa. Se eu fui agredida na rua e alguém bateu em mim e eu apareço com o braço quebrado, foi isso que aconteceu. Se você foi estuprada, foi em um médico e ele te deu um laudo de violência sexual, foi isso que aconteceu. Ponto.

Este ano foi a primeira vez que eu consegui bloquear a entrada do meu estuprador em um projeto. Mas não foi fácil. Foram semanas de conversa e eu tive sorte de as pessoas em cargos de chefia serem mulheres, pessoas com quem eu me relaciono há um bom tempo.

As donas da produtora me garantiram que não contratariam o meu estuprador, mas isso só realmente aconteceu depois que elas consultaram um advogado. Independente da produtora ter donas mulheres, quando o assunto é assédio e estupro, fica a palavra de quem está acusando contra a de quem está sendo acusado. É muito difícil um réu de estupro acabar sendo criminalizado.

As produtoras deixam de contratar por muito menos. “Vamos chamar fulano?” “Não, pelo amor de deus, ele é sindicalista. Se passar cinco minutos após o horário, ele vai bater boca com a equipe inteira”. Agora, se você fala: “Essa pessoa estuprou fulana”. Aí respondem: “Complicado… Olha, eu não quero contratar, mas se alguém me perguntar porque não contratei, o que eu vou falar? Vou acusar a pessoa de uma coisa que ele não foi juridicamente declarado culpado?”.

No primeiro hospital em que eu fui, a assistente social e a enfermeira me falaram: “A gente tá super surpresa, você foi estuprada? Porque assim quem vem aqui que é estuprada é tipo puta, travesti”.

Dias depois, fui encaminhada ao Pérola Byinton, um hospital referência em saúde da mulher em São Paulo. Eu queria passar com um psicólogo, com um psiquiatra, e a atendente me informou que tinha horário só para dali dois meses. Então, eu falei: “Eu estou em crise, preciso falar com uma pessoa agora”. Ela respondeu: “Pois é amiga, todo mundo que está aqui foi estuprada, vai ter que esperar”.

“A escrivã já chegou a me falar um dia: ‘Você é tão jovem, tão bonita. Para de pensar nisso, você tem é que arrumar um marido, casar e ter uma família'”.
 Diante dessas experiências, eu não me sentia em nenhuma condição de entrar numa delegacia. Porém, em determinado momento, com medo da pessoa vir atrás de mim e orientada por uma advogada feminista, acabei indo. Mas depois de um tempo não consegui mais continuar acompanhando o processo.

A escrivã da delegacia chegou a me falar: “Você é tão jovem, tão bonita. Para de pensar nisso, você tem é que arrumar um marido, casar e ter uma família!”.

Eu sou uma pessoa com mais de trinta anos, sou classe média, estudei, fiz faculdade, tenho acesso à internet, me considero uma pessoa bem informada, assim, minimamente, e acho que é muito pouca a informação disponível.

No primeiro hospital em que eu fui eu recebi um laudo de estupro, mas fui descobrir só depois que ele não significa nada porque a médica não era policial. O único laudo que significa alguma coisa na Justiça é o laudo da policial do IML e daí quando eu fui lá ela não aceitou o que eu tinha.

É quase impossível reunir as provas que a Justiça pede para provar um estupro. Você tem que acabar de ser estuprada, não fazer xixi, não tomar banho, não tirar sua roupa e ir ao IML. E aí talvez você tenha prova material, física.

A coisa piora no meu caso, um estupro de vulnerável. Eu demorei cinco dias pra entender o que tinha acontecido comigo. É óbvio que você já tomou banho, você fez xixi. Que tudo já passou.

Eu acho que eu fui estuprada sem camisinha, não sabia que eu podia tomar a PEP (Profilaxia pós-exposição ao HIV). Daí depois de um mês assim que eu fui saber e perguntei a enfermeira: “Meu, por que não tem isso escrito em tudo em quanto é lugar?”. E ela respondeu “Ah, mas tem no site do Ministério da Saúde”.

A única coisa que eu fiz foi tomar a pílula do dia seguinte. Uma bomba, você fica seis meses até seu corpo voltar ao normal e você lembra todo mês o motivo pelo qual a sua menstruação está atrasada. Demorei meses para conseguir me recuperar, eu me trato até hoje. Eu vou no psicólogo, eu vou no psiquiatra, tomo remédio.

E ele ainda pegou um trabalho que eu ia fazer! Foi viajar, ficou quatro meses. Um projeto que era ainda pro público infantil, com um monte de mulher. Imagina o meu desespero, sabendo que a pessoa está viajando, num hotel ou numa casa, com um monte de amigas minhas.Sendo que eu avisei o que tinha acontecido comigo para o produtor executivo, falei para a diretora de produção. As pessoas só conseguem responder: “Ah, desculpa, mas se eles contrataram não posso fazer nada”.

R., 26 anos. Assistente de direção.

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“Ele arrastou a mão dele pelo banco e a colocou debaixo da minha bunda. Meu corpo inteiro ficou paralisado, eu nem conseguia olhar para ele ou para o taxista”.

Comecei a trabalhar em uma produtora quando estava na faculdade ainda. Era estagiária, chegava, fazia meu trabalho e ia embora. Eu era invisível e para mim isso era ótimo. Mas tinha um diretor que sempre resolvia fazer “brincaderinhas”. Um dia fui de saia para o trabalho e ao chegar eu ouvi “Ah, o verão, né?”. Nunca mais usei uma saia naquele lugar.

Saí para a vida de freelancer depois de uns anos. De lá para cá as “brincaderinhas” não pararam. E teve dois incidentes que me marcaram demais.

Um aconteceu com um superior. Produtor executivo de uma produtora que não existe mais. Uma produtora toda moderninha. O cara conhecia meu parceiro e nós tínhamos amigos em comum fora do trabalho. Um dia saímos de uma prova de figurino e fomos para a produtora. No caminho inteiro, ele não se dirigiu a palavra a mim, não tirou o olho do celular, me tratou como inferior, como se eu nem tivesse ali.

Chegando na produtora, no meio do trânsito, ele arrastou a mão dele pelo banco e a colocou debaixo da minha bunda. Meu corpo inteiro ficou paralisado, eu nem conseguia olhar para ele ou para o taxista. Me mexi e ele prontamente tirou a mão de lá. Saí correndo do táxi. Ele deu uma enrolada para não pegarmos o mesmo elevador. Tive que trabalhar ao lado dele por mais duas semanas.

“Ele me perguntou se eu não tinha medo de andar pelo mato sozinha. Falei que não. Ele respondeu: ‘É que se eu te encontro sozinha por aqui, não garanto que vou me segurar'”.

Em um outro trabalho, estávamos filmando em uma casa bem isolada, tinha muita lama para chegar lá. Eu trabalhava como segunda assistente de direção na época. Parte do meu trabalho era ficar cuidando do elenco, entre maquiagem e figurino, levar para o set na hora certa, etc. O camarim era um pouco longe do set, eu tinha que andar pelo mato por uma parte.

Entre um take e outro eu tava perto do set para ajudar o primeiro assistente de direção, caso ele precisasse. Nesse momento, um contra-regra chegou para puxar papo. Começou a conversar sobre a casa, como era bonito aquele lugar, como era quieto e tranquilo. Até que ele me perguntou se eu não tinha medo de andar pelo mato sozinha. Falei que não. Ele respondeu: “É que se eu te encontro sozinha por aqui, não garanto que vou me segurar”.

Eu não sei o quanto outras mulheres sofreram os mesmos abusos ou mais. Nesse mercado, além de sempre ter pessoas duvidando que a gente sabe o que tá fazendo, além de vermos homens bem menos experientes que a gente em posições superiores, além de aguentarmos os diversos abusos que aguentamos, não temos a quem recorrer.

Em todas essas situações, eu sempre me senti sozinha. É extremamente difícil reportar o abuso porque você não se sente amparada o suficiente. Frases como “Ah, mas ele é casado”, “Não, imagina, foi uma brincadeira”, “Você não deveria levar as coisas tão a sério” são coisas que eu ouvi a minha vida profissional inteira.

Estou morando há um ano no Canadá e entendo por aqui que reportar um abuso é coisa séria. O cara é afastado e eles não crucifixam a vítima. Muita gente aqui já foi queimada por conta disso. No Brasil, sinto que meu telefone parava de tocar cada vez que eu resolvia “levar as coisas muito a sério”.

R., 22 anos. Técnica de som.

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“Ele me disse: ‘Eu não estou vendo aqui no contrato manter relações sexuais com o chefe’. Naquele dia eu mal almocei, fiquei o dia inteiro quieta, eu não sabia o que fazer”. 
Minha história aconteceu com um chefe quando eu ainda fazia estágio pela faculdade. Eu precisava das horas, parecia ser uma experiência legal – eu ficaria duas semanas em uma praia do Rio Grande do Sul e uma semana em Porto Alegre – e eu estava disposta a aprender tudo sobre a função de microfonista.

No dia em que eu recebi o contrato de estágio da faculdade e resolvi mostrar pra ele, ele me disse: “Eu não tô vendo aqui manter relações sexuais com o chefe”. Naquele dia eu mal almocei, fiquei o dia inteiro quieta, não sabia o que fazer.

Em um outro dia, eu fiquei meio doente e trocamos de funções: ele fazia a microfonia e eu cuidava do gravador. Sempre que ele podia, ficava fazendo sons de sexo no microfone, enquanto eu estava de fone pra ouvir.

A última desse cara foi na última diária, quando ele, sem pedir e forçando algo de intimidade que nunca tivemos, colocou as mãos na minha cintura, quase perto da bunda, e me “mostrou qual a melhor posição pra deixar o microfone”.

Eu relatei estes comportamentos para o coordenador e para a professora de estágio, mas não serviu de muita coisa. O coordenador convocou ele pra uma reunião a qual ele nunca foi. Então, ele teve a cara de pau de me ligar pra me perguntar o que tava acontecendo, já que tinha relação comigo e o estágio. E e ele me forçou a falar tudo o que eu tinha relatado à coordenação pra ele.

Ele disse que era tudo brincadeira, obviamente, e que eu não deveria levar ele a sério. Eu o confrontei dizendo que era errado e que se fosse com um homem ele não faria as mesmas coisas. Ele disse que sim, faria com um homem também porque é tudo brincadeira.

esse homem que foi meu chefe foi banido do curso, por causa desse ocorrido comigo. Foi um trabalho que me marcou muito. Sempre que lembro fico mal. Tenho falar para as pessoas sobre o comportamento inadequado dele, mas é realmente muito difícil ver as pessoas dando valor ao que eu falo. Ele continua por aí, fazendo trabalhos, pelo que ouvi, assediando outras meninas. Felizmente nunca mais vi ou trabalhei com ele.

L., 35 anos. Pesquisadora em audiovisual.

“Dias depois recebi um email dele assumindo o quanto tinha sido inadequado, mas dizendo que sentia muita falta das nossas conversas – sempre unilaterais, diga-se de passagem. Ignorei o email, me mudei e de repente comecei a encontrá-lo perto da minha casa”.

Havia acabado de voltar de um intercâmbio e estava desesperada por um trabalho. Então, fui indicada para um estágio numa pequena produtora fundada por três homens. O trabalho ia desde escrever projetos a inscrever filmes em festivais, fazer assistência de produção e trabalho de escritório. Fiz a entrevista e passei.

Logo no começo do novo emprego, um dos sócios me adicionou no Messenger. Ele me procurava online principalmente de noite e nos finais de semana. Achei essa atitude bastante estranha mas acabei deixando acontecer pela necessidade do emprego. Eu não dava muita corda, mas tentava não ser antipática. Ele nunca foi explícito no assédio, isso fez com que a coisa fosse ainda mais confusa pra mim.

Tentei cortá-lo algumas vezes demonstrando estar ocupada e ele me questionava sobre o que poderia ser mais importante do que conversar com ele. Depois disso eu comecei a bloqueá-lo quando estava fora do escritório. Um dia ele me ofereceu carona e eu aceitei porque íamos para o mesmo lugar. Aí ele me escreveu dizendo que ia descer e era para eu esperar uns cinco minutos e descer para encontrá-lo na garagem.

Achei totalmente bizarro porque realmente não teria nada demais sairmos juntos se eu estava indo de carona com ele. Por ter achado aquilo absurdamente suspeito, disse que não precisava mais da carona e dei como desculpa que tinha que passar por uns lugares e que preferia ir a pé.

Não sei ao certo se no dia seguinte ou pouco tempo depois, ele estava tendo uma discussão com a NET. Quando ele desligou, eu comentei que a lua tava fora de curso, que astrologicamente era um período de tensão. Ele deu um escândalo dizendo que não era pra eu ficar escutando as conversas dele. O escritório era minúsculo, os sócios dele estavam lá e não entenderam nada, já que o clima do escritório era normalmente bem humorado.

Sai de lá sem olhar pra trás assim que encontrei um emprego melhor. Bloqueei ele e segui minha vida. Anos mais tarde tive o desprazer de encontrá-lo num show. Fiz a egípcia. Dias depois recebi um email dele assumindo o quanto tinha sido inadequado, mas dizendo que sentia muita falta das nossas conversas – sempre unilaterais, diga-se de passagem. Ignorei o email, me mudei e de repente comecei a topar com ele perto da minha casa.

Tempos depois, ele me mandou solicitação de amizade no Facebook e inbox dizendo que queria me pedir desculpas, que sentia minha falta e algo do gênero. Ignorei e bloqueei novamente. Continuei a encontrá-lo sem querer às vezes e até hoje tenho um certo receio de estar sendo stalkeada por ele.

Estou tentando mudar de área porque no audiovisual o machismo impera tanto nas grandes quanto nas pequenas produtoras. Dificilmente o trabalho feminino é considerado para além da função de produção e nesse sentido produção passou a abarcar tudo o que um dos homens do projeto não está a fim de fazer.

Já fui creditada como assistente de produção tendo de fato realizado pesquisa. Mais de uma vez. É como se fosse desmerecido uma mulher receber crédito sobre o conteúdo criativo. Existe todo um sistema de apoio mútuo ao crescimento de jovens mulheres que infelizmente na minha época só se deu entre os homens. Mas também tem um cercadinho, se você não faz parte da turma, suas ideias, sua experiência, sua formação e criatividade não importam: você simplesmente não vai ser considerada para nenhuma função que não seja produção.

C., 33 anos. Diretora de cinema.

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Já fui assediada várias vezes. Mas vou falar aqui de assédio sexual, porque a lista de assédio moral é imensa e constante.

Eu tive uma experiência de assédio com um ator que recentemente foi denunciado por estupro em set. Aconteceu durante o Festival do Rio 2013, quando comemorávamos a exibição do nosso curta em uma festa num bar em Botafogo. Para ser sincera, eu não lembro das palavras exatas que ele usou, mas tive que fazer o que mais odeio, que é pedir ajuda para amigos homens que estavam ali, meus colegas.

Até comentei com eles quando a denúncia de estupro deste ator chegou à imprensa e meus amigos se lembraram muito bem do quanto ele foi canalha comigo. Isso é bom, porque às vezes a gente acha que está imaginando coisas, né? Ou que exagera. Lembro de ter sido asqueroso, de tentar me dar um beijo forçado e ficar falando de um jeito nojento que queria sair comigo depois dali de qualquer jeito!

Mas esta não foi nem a primeira nem a última vez. Em uma outra ocasião, eu estava na equipe de um curta e resolveram fazer uma reunião de imersão em um local mais afastado onde teríamos que pernoitar. Éramos eu, mais uma mulher e três homens. Eu era assistente de direção e, por fim, só sobramos eu e o diretor ali na varanda da casa onde rolava uma confraternização. Foi quando ele, do nada, tentou me beijar. Eu me assustei, falei que não tinha nada a ver e que ele tava confundindo as coisas. Ele ainda insistiu muito antes de, por fim, finalmente ir dormir.

Outra situação que aconteceu comigo foi em 2011. Eu tinha 25 anos e era minha estreia em festivais desse porte. Uma noite, o pessoal do hotel foi convidado para uma festa de confraternização. Ao entrar, vi que tinha uma galera, bastante gente mesmo.

“Este diretor me perguntou: ‘Você vai gostar se eu te comer por trás?’ Eu, realmente, não entendi a pergunta e acabei mandando aquele ‘quê?’. Ele repetiu”.

 Fui parada por um diretor conhecido que perguntou se eu trabalhava no festival. Não entendi a pergunta. Ele perguntou de novo se eu era monitora do evento, recepcionista, algo assim. Eu disse que não, que eu era diretora e estava com meu primeiro curta em competição. Ele elogiou meus olhos e eu tentei desviar o assunto.

Então, ele me perguntou: “Você vai gostar se eu te comer por trás?” Eu, realmente, não entendi a pergunta e acabei mandando aquele “quê?”. Ele repetiu. Eu levantei o olhar procurando meus amigos, que logo me viram e perceberam minha aflição. Fomos embora naquele minuto, eu praticamente me desmaterializei na frente do cara, saí fugida.

Foi chocante ouvir isso de um cara que eu admirava desde as aulas de cinema, com quem eu achei que teria uma conversa sobre… filmes. Já contei essa história para algumas pessoas e é comum as pessoas defenderem o comportamento dele dizendo que ele é assim mesmo ou que ele estava em um momento difícil de sua vida.

Com os protestos no Globo de Ouro, e depois da carta das 99 francesas e da coluna da Danuza Leão, tem muita gente dizendo que essa onda de denúncias de assédio das mulheres vai acabar com a paquera, com o flerte, que tudo isso virou uma caça aos bruxos, que é tudo mimimi de feminista. Olha, cantada é cantada, assédio é assédio. E é inacreditável ter que explicar em 2018 que essa diferença existe. As mulheres não estão se levantando contra os homens, mas se levantando contra assediadores. Nós estamos mais unidas do que nunca e não vamos mais nos calar.

V, 31. Atriz de musicais.

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No meio do teatro musical, existem alguns comportamentos comuns entre os maestros héteros. Muitos deles apresentam comportamentos duvidosos em relação às mulheres, dando preferências, se aproximando demais… Meu caso ocorreu com um maestro específico que ficou famoso negativamente entre o meio por ser uma pessoa abusiva. Na época eu tinha 22 anos. E ele era casado.

Ele ficava muito no meu pé, se aproximava demais, se encostava demais.

Estávamos nos apresentando no Nordeste e, uma vez, saindo do ensaio, o elenco todo foi jantar e ele sentou do meu lado. Ele ficava passando as mãos nas minhas costas, no meio de todo mundo. Bem desagradável. No meio do elenco, da orquestra, de todo mundo. Não tinha como sair dali, pedir para ele parar. Na hora de ir embora, eu fui com minha amiga e ele veio junto. Eu grudei nessa minha amiga, mas ele foi me acompanhando até a porta do meu quarto do hotel.

Na época eu me senti culpada, achando que tinha provocado de alguma forma.

“O grande incômodo é saber que, mesmo depois de ter sido escoltado por seguranças para fora do teatro por um caso de assédio, alguns anos depois este maestro voltou a trabalhar no mesmo lugar.”

Mas ele continuou fazendo isso em várias produções depois. Ele chegou a ser demitido de um teatro grande onde era maestro por assédio sexual. Fizeram uma denúncia porque ele tinha se fechado no camarim com uma das meninas do elenco. Ele ficou algum tempo sem trabalhar, mas no ano passado retornou para o mesmo teatro, a mesma empresa.

Então, o grande incômodo das mulheres é saber que, mesmo depois de ter sido escoltado por seguranças para fora do teatro por um caso de assédio, alguns anos depois ele voltou a trabalhar no mesmo lugar.

Eu sinto que hoje as mulheres no teatro musical se comportam de maneira diferente. Passamos a falar mais sobre esses casos, questionar, debater. Nos últimos trabalhos que fiz, vira e mexe assuntos como feminismo e empoderamento surgem e são discutidos. Mas algumas coisas, infelizmente, continuam enraizadas.

J. 37. Consultora.

Entre 2013 e 2014 eu trabalhei como jornalista em uma grande instituição cultural ligada ao comércio. Lá passei por algumas situações. Uma delas aconteceu no dia em que o diretor-geral fez aniversário, quando todos eram obrigados a ir até a sala dele para dar os parabéns. Eu tentei me esquivar dessa situação, mas meu gerente não deixou. Ele veio conversar comigo na minha mesa, a primeira vez que conversei com ele na vida, e disse que “não tinha como não ir”.

“Eu sempre tenho dúvida do que pode ser considerado assédio sexual ou não. Mas daí eu me pergunto: se eu fosse um homem, ele teria feito esse comentário e agido assim?”

Então eu fui na sala com outro grupo. Eu nunca tinha falado com o diretor-geral antes. Ele me abraçou de lado, colocou a mão na minha cintura e ficou conversando com as pessoas enquanto acariciava minha cintura. Eu fiquei congelada, não sabia o que fazer. Aí ele também fez algum comentário sobre minha saia, minha perna, e ficava dizendo: “Nossa, eu não sabia que uma pessoa tão bonita trabalhava aqui, preciso frequentar mais a sua equipe”.

Eu sempre tenho dúvida do que pode ser considerado assédio sexual ou não. Mas daí eu me pergunto: se eu fosse um homem, ele teria feito esse comentário e agido assim?

Mais tarde, conversei com outras pessoas que me contaram histórias de que ele passava a mão na bunda de algumas meninas, levantava a saia, abraçava e ficava acariciando onde não deveria – mas são coisas que eu não vivi nem vi, só ouvi de relatos de outras pessoas.

Lá dentro, tinha a lenda que, se alguém cometesse assédio sexual, não era mandado embora. A punição era ser promovido – e ganhar mais – e ser mandado para uma unidade do interior, menor, mais afastada, onde sofreria a punição de “ostracismo”. Uma punição que era um aumento de salário e um aumento de cargo.

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